quinta-feira, 23 de julho de 2015

A crítica de Darwin ao argumento teleológico de Paley



Autor: Maxwell Morais de Lima Filho
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará e Professor do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes da Universidade Federal de Alagoas 
 Contato: max.biophilo@gmail.com 


Cada corpo organizado, nas disposições que contém para a sua manutenção e propagação, atesta um cuidado por parte do Criador expressamente direcionado para esses fins. (...) As obras da natureza querem apenas ser contempladas – William Paley

 O organismo mais insignificante é um tanto mais elevado do que a poeira orgânica debaixo dos nossos pés e ninguém que use de imparcialidade pode estudar uma criatura vivente, mesmo que seja humilde, sem entusiasmar-se diante de sua estrutura e das suas características maravilhosas – Charles Darwin 



1. Introdução
  
       Do início da filosofia até aos dias atuais, esta questão tem constantemente permeado os debates filosóficos: Deus[2] existe? Ao longo da história, foram propostos argumentos com o intuito de demonstrar racionalmente a existência de Deus. Podem-se dividir, para efeitos práticos[3] , tais argumentos em quatro tipos, a saber: ontológico, cosmológico, kalam[4] e teleológico. Apenas esse último será tratado neste texto. 
    O argumento teleológico ou argumento do desígnio[5] foi apresentado de diversos modos no decorrer do tempo, sendo bastante famosa a Quinta via de Tomás de Aquino e a própria versão de Paley, que será abordada logo abaixo. Apesar das diferenças, pode-se dizer que esse argumento tenta demonstrar que a natureza foi planejada com algum tipo de propósito ou finalidade (daí o nome teleológico), já que quando a contemplamos encontramos sinais nítidos de desígnio. 
    Os organismos biológicos, especificamente, aparentam em máximo grau terem sido planejados, haja vista a intricada complexidade biológica de seus corpos. No que se segue, apresentarei dois modos distintos de explicar o desenho e a complexidade biológica, a primeira delas invoca um Deus pessoal onipotente, onisciente, onipresente, eterno e sumamente bom (seção 2), enquanto a outra explicação prescinde de um Planejador sobrenatural e se baseia tão-somente em um processo cego sem qualquer tipo de antevisão (seção 3). Pretendo mostrar que essa última explica adequadamente a complexa estrutura biológica do olho[6] ao mesmo tempo em que demonstro que não há qualquer evidência de planejamento inteligente desse órgão (seção 4). 

2. O Argumento Teleológico de William Paley

      William Paley nasceu em 1743 em Peterborough e estudou no Christ’s College, em Cambridge. Apesar de não ter sido um pensador original, ele escrevia de modo entusiástico e apaixonante; o seu último e mais famoso livro – Teologia Natural[7] – não é exceção à regra. A temática geral desse livro está bem delineada em seu subtítulo, já que o autor objetiva “demonstrar as evidências da existência e dos atributos da Divindade reunidos a partir dos indícios da natureza”, notadamente no que se refere às estruturas biológicas. 
     A teologia natural[8] não é recente (remonta pelo menos à Grécia antiga) e, a despeito da dificuldade de defini-la precisamente[9] , pode-se ter em mente que ela está relacionada à prática de inferir a existência de Deus a partir do mundo (EDDY & KNIGHT, 2006, p. ix), ao conjunto dos argumentos sobre a existência de Deus (PORTUGAL, 2006, pp. 314-5), ou à ideia de que há uma conexão entre o mundo observável e um domínio transcendente (McGRATH, 2011, p. 12). No que se refere à teologia natural inglesa, ela surge em meio a  um conturbado cenário político e religioso no final do século 17, sendo responsável por contrabalançar as visões ateístas e materialistas que surgiram durante esse período[10]. Ela despertou interesse na Inglaterra dessa época por, pelo menos, três fatores – (i) o surgimento da crítica bíblica, (ii) o crescimento da desconfiança na autoridade eclesiástica e (iii) o desgosto pela religião organizada e pelas doutrinas cristãs (McGRATH, 2011, pp. 50-3).
      Os teólogos naturais ingleses defendiam a existência de Deus a partir de dois tipos distintos de argumentos (McGRATH, 2011, p. 53) – os argumentos do desígnio (observação da ordem: “a ordem implica um Ordenador”) e para o desígnio (evidência de projeto: “não existe propósito sem um Ser que o confira sentido”). Esta segunda abordagem é característica da concepção de teologia natural conhecida como físicoteologia[11], concepção da qual o livro de Paley é tanto um ponto de referência quanto o apogeu. 
     Apesar da ordem e da racionalidade do mundo que é governado pelas leis newtonianas[12], o Universo não é o candidato ideal para “provar” a existência de um “Criador inteligente”, pois o desígnio é deduzido a partir da complexidade do artifício, ou seja, “da relação, do ajuste e da correspondência entre as partes” de determinada estrutura (PALEY, 2006, p. 199). Sendo assim, Paley concede especial atenção aos organismos e estruturas biológicas (olho, coração, articulações etc.), pois estes possuem a complexidade necessária para fundamentar o seu argumento.  
     Paley (2006, p. 7) inicia a sua Teologia Natural com uma passagem que ficou célebre. Ele pede que se imagine o seguinte: caso alguém topasse em uma pedra enquanto andava e se perguntasse como ela havia parado ali, não seria absurdo, diz Paley, que se respondesse que a pedra sempre estivera ali. Entretanto, prossegue ele, o mesmo não poderia ser dito caso a pessoa em questão tivesse encontrado um relógio, ou seja, seria totalmente insensato acreditar que o relógio estava no local desde sempre: a existência do relógio  exige uma explicação diferente da que é dada para a pedra. Por quê? Para responder isso, basta que se analise o relógio e, mesmo que não se saiba dos pormenores de sua origem e de seu funcionamento, observar-se-ia o seguinte: o ajuste preciso de várias molas, engrenagens e outras peças é o responsável pelo movimento, devido a um intricado mecanismo, dos ponteiros do relógio. Esse movimento dos ponteiros, que é visível por causa da transparência do vidro, tem o propósito de marcar as horas do dia.
    Diferentemente da observação da pedra, uma inferência inevitável surge da análise do relógio (PALEY, 2006, p. 8): a complexidade do mecanismo e a finalidade do relógio só são devidamente explicadas por um (ou mais) relojoeiro que o projetou e o montou[13], ou seja, deve existir uma mente inteligente e intencional por trás do intricado artifício adaptado à função cronométrica do relógio (PALEY, 2006, p. 12-5). E o que dizer acerca da natureza? Do mesmo modo que no exemplo do relógio, há também na natureza nítidas manifestações de desígnio, contudo, as “obras da natureza” exprimem um grau muito maior de complexidade e propósito, refletindo a superioridade e a perfeição da mente que as produziu. Superioridade essa em comparação com a inteligente, porém, finita e imperfeita mente do relojoeiro humano: as obras da natureza compartilham com o relógio “toda indicação de artifício” e “cada manifestação de desígnio”, com a importante diferença de que eles são quantitativa e qualitativamente superiores naquelas, predomínio “num grau que excede todo cálculo” (PALEY, 2006, p. 16).
      Como dito anteriormente, Paley se utiliza de variadas estruturas biológicas – ossos, articulações, músculos etc. – com o intuito de demonstrar o seu argumento: a análise dessas complexas e intrincadas estruturas nos leva a postular um Projetista inteligente por trás das mesmas. Por questões de espaço, restringir-me-ei ao exemplo do olho para ilustrar esse ponto (PALEY, 2006, pp. 16-28).
      A constatação de semelhanças estruturais e da obediência aos mesmos princípios ópticos entre o telescópio e o olho leva à conclusão que esse órgão foi projetado intencionalmente para a visão (PALEY, 2006, p. 16). Paley faz mais do que sugerir uma mera analogia[14] entre a estrutura e o mecanismo de um instrumento humano, por um lado, e um instrumento biológico, por outro. Ele aponta, na verdade, para uma identidade: como o olho é um mecanismo, infere-se que ele foi inteligente e intencionalmente projetado (McGRATH, 2005a, pp. 129-30; 2005b, p. 301). A partir desse exame, Paley chega à conclusão de que “o olho foi feito para a visão” da mesma maneira que o “telescópio foi feito para auxiliá-la”, ou seja, as funções da visão e do telescópio partilham exatamente da mesma prova de desígnio e, portanto, da inferência de um designer que os projetou e os construiu. Por conseguinte, só é possível explicar a correlação biológica entre a forma (anatomia) do olho e a sua função (visão) a partir do desígnio divino: o olho, para ser repetitivo, foi feito para ver (PALEY, 2006, p. 16; GOULD, 1993, p. 148; DAWKINS, 2005, p. 23; McGRATH, 2011, pp. 94-5). 
    Abordarei no que se segue o mecanismo evolutivo que foi proposto quase 60 anos após o argumento do desígnio de Paley: a seleção natural.  

3. Charles Darwin e o Mecanismo de Seleção Natural

    Charles Robert Darwin e William Paley compartilhavam[15] o país de origem, os estudos em Cambridge e a defesa do argumento do desígnio[16]: durante toda a sua viagem a bordo do H.M.S. Beagle (1831-1836), o naturalista inglês ainda possuía uma visão teísta cristã e acreditava, por conseguinte, que o Deus pessoal da Bíblia havia projetado e criado os seres vivos[17] .
     Entretanto, a concepção de Darwin se distanciou bastante da posição de Paley quando, por volta de 1837-38, ele descobriu o mecanismo de seleção natural e se deu conta de que as espécies não eram fixas[18]. Tendo em mente o principal mecanismo explicativo do processo evolutivo, Darwin (2000, p. 75) chegou à seguinte conclusão:

                                O antigo argumento do plano da natureza, tal como exposto por Paley, e que antes me parecia tão conclusivo, cai por terra, agora que a lei da seleção natural foi descoberta. Já não podemos argumentar, por exemplo, que a bela articulação de uma concha bivalve deve ter sido feita por um ser inteligente, do mesmo modo que o homem criou as dobradiças das portas. Parece haver tão pouco planejamento na variabilidade dos seres orgânicos e na ação da seleção natural quanto na direção em que sopra o vento. Tudo na natureza é resultado de leis fixas. 

      Para explicar como essa “lei” biológica – descoberta independentemente por Wallace19 – foi responsável por essa drástica mudança de perspectiva de Darwin, farei um breve resumo das ideias centrais da primeira parte do livro A Origem das Espécies[20] (capítulos 1- 4), publicado originalmente em 1859.  
        A intenção geral de Darwin nesse livro é defender e fundamentar que os organismos descendem de um ancestral comum e evoluem por seleção natural (principal, mas não o único mecanismo evolutivo)[21]. Darwin (2006) constatou que se as espécies estivessem em condições favoráveis, o seu crescimento populacional se daria de modo exponencial. Contudo, as populações de organismos em geral são estáveis, e essa estabilidade decorre da limitação dos recursos naturais. Devido à escassez de recursos, há uma competição[22] ferrenha entre os indivíduos – luta pela existência (capítulo 3) –, onde alguns irão sobreviver e outros não. Caso se observe atentamente, ver-se-á que os indivíduos de uma mesma população são diferentes no que se refere a muitas características anatômicas, fisiológicas e/ou comportamentais (capítulo 2), e muito dessa variabilidade é transmitida dos progenitores aos seus descendentes[23]. Isso significa que os indivíduos portadores de características vantajosas levarão vantagem na luta pela existência em relação aos que não as possuem (maior probabilidade de sobrevivência). Os organismos que vivem mais, por sua vez, têm maior chance de se reproduzir (sucesso reprodutivo) e, portanto, de passar essas características aos seus descendentes, e assim sucessivamente. A sobrevivência desigual dos indivíduos de uma população se dá por seleção natural (capítulo 4), um processo semelhante à seleção artificial[24] (capítulo 1) utilizada pelo homem na domesticação de animais e plantas. A atuação da seleção natural ao longo de muitas gerações acarretará uma mudança contínua e gradual das populações, mudança essa que é chamada de evolução biológica.
        Com o intuito de explicar melhor a atuação da seleção natural, Darwin (2006, pp. 507- 8) pede que imaginemos que um lobo cace diversos tipos de presas. Dependendo do tipo de presa, o sucesso pode ser alcançado por diferentes características do canídeo – devido à “astúcia”, “força” ou “agilidade”, por exemplo. Suponhamos ainda, prossegue ele, que haja bastantes cervos e que eles sejam o tipo de presa mais rápida do lobo. O que aconteceria nessa situação? Ora, já que as características na população de lobos são variáveis, os que “forem mais ágeis e velozes” teriam maior sucesso na captura de cervos, aumentando a probabilidade de sobrevivência e de sucesso reprodutivo, transmitindo, consequentemente, tais características vantajosas para as suas crias[25]. Uma população mais ágil e veloz, portanto mais adaptada, seria o resultado desse processo de variação, seleção e herança atuando em numerosos lobos ao longo de milhares de gerações.  
        Caso se queira representar em uma imagem esse longo e gradual processo, deve-se imaginar uma imensa e frondosa árvore, onde as espécies são representadas pelos terminais de seus galhos mortos (espécies extintas) e vivos (espécies atuais). Lembrando-se, é claro, que esse processo é dinâmico, ou seja, alguns dos atuais ramos irão perecer (espécies que se extinguirão), bem como ainda brotarão ramos novos (espécies que surgirão). Apesar de não explicar a origem da vida, Darwin supõe que ela surgiu de uma ou algumas poucas espécies ancestrais[26]. Na prática, isso significa dizer que todos os seres vivos que existiram, existem e existirão na Terra são aparentados em maior ou menor grau, pois compartilham a mesma raiz. Em resumo, essa é a representação da árvore da vida.  
      No 4º capítulo d’A Origem, dedicado à seleção natural, Darwin se utiliza da única ilustração presente em todo o livro, um diagrama hipotético semelhante à imagem da árvore supracitada (figura 1)27. O eixo vertical do diagrama representa a dimensão temporal (I, II, III etc.) e a distância entre as letras no eixo horizontal reflete a diferença de parentesco evolutivo (divergência filogenética) entre as espécies. Dito isso, pode-se constatar que há quinze novas espécies no topo do diagrama (tempo atual) que descenderam por modificação a partir de algumas das onze espécies ancestrais presentes na base (representadas pelas letras A-L), não deixando de se notar também os muitos “ramos” intermediários entre os dois extremos:  


Figura 1: Diagrama em forma de árvore presente n’A Origem das Espécies (DARWIN, 2006, P. 525). 

      Antes de prosseguir, é importante ratificar que Darwin propôs uma teoria gradualista (mudança contínua e gradual das populações), e isso significa que o estado atual de um organismo ou de um órgão foi alcançado através de inúmeras gradações intermediárias – Natura non facit saltum. É justamente por defender esse gradualismo que Darwin (2006, p. 571) admitiu explicitamente que a sua teoria sucumbiria caso se demonstrasse que certo órgão não poderia ser explicado por meio de pequenas e sucessivas mudanças ao longo do tempo. Sucumbiria, pois ele se apressa em afirmar logo em seguida: “Só que nunca consegui encontrar esse órgão” (DARWIN, 2006, p. 571).  
      Não seria o olho um bom exemplo de órgão complexo não passível de ter evoluído gradualmente? Essa foi uma das muitas estruturas[28] analisados por Darwin n’A Origem. Na seção seguinte, abordarei a seleção natural como pano de fundo explicativo para o olho, mostrando que é possível explanar o seu surgimento de modo natural, gradual e não intencional.  

4. Olho: Desenho sem Desígnio

      Eis aonde chegamos: é possível, a partir do que foi exposto, explicar uma mesma estrutura – o olho – de dois modos incompatíveis. O primeiro (seção 2) afirma que a complexidade estrutural e a intrincada conexão entre as partes desse órgão são suficientes para atestar que ele tenha sido planejado e fabricado, de uma só vez, por um Ser sobrenatural inteligente, poderoso e bom: o Deus pessoal da concepção cristã. Já de acordo com a explicação alternativa (seção 3), toda a complexidade e “perfeição” do olho atual podem ser explicadas por um mecanismo material, a seleção natural, que atuou sobre inúmeros estágios intermediários, ou seja, a origem dessa estrutura se deve a um processo gradual e desprovido de finalidade.
       Darwin (2006, pp. 569-71) afirma que pode parecer impossível ou absurdo supor que um órgão capaz de ajustar o foco, de receber quantidades variadas de luz e de corrigir aberrações seja explicado pela seleção natural. Essa impossibilidade, entretanto, é apenas aparente, pois é possível demonstrar que existem numerosas gradações vantajosas entre um olho simples e um complexo. Esse olho complexo resultou da seleção natural atuando sobre a variabilidade biológica, a qual promoveu uma sobrevivência diferencial dos indivíduos e da transmissão hereditária das características vantajosas, que se acumularam por inúmeras gerações. A impossibilidade aparente, portanto, está na suposição de que um órgão moldado por milhões de anos surja em um só passo (DARWIN, 2006, pp. 569-71).
Contra essa suposição, Darwin nos adverte repetidas vezes: Natura non facit saltum29 
      No entanto, alguns críticos defendem que o processo evolutivo é incapaz, mesmo levando-se em consideração o vasto tempo geológico, de moldar um órgão como o olho, haja vista que o acaso não produziria a sua complexidade estrutural: caso fosse possível separar cada um dos muitos componentes desse órgão e, após isso, juntá-los aleatoriamente, constatar-se-ia que seria implausível, em termos práticos, formar um olho funcional. Se esse é o caso, faz mais sentido postular que a origem dessa estrutura biológica escapa à explicação naturalista proposta por Darwin. 
      A falha do raciocínio acima, porém, está em considerar que o conjunto do processo evolutivo se dê ao acaso, e isso é um erro. Biólogos atuais utilizam conceitos como mutação genética para explicar o surgimento de variações[30] aleatórias que ocorrem no interior de uma população de organismos. A imensa maioria dessas mutações é deletéria, mas o que falar das que são vantajosas? Simples, a seleção natural se encarrega de eliminar as primeiras e de preservar as últimas[31], promovendo a sobrevivência não aleatória dos indivíduos e sendo, desse modo, responsável pelo acúmulo das modificações favoráveis na população em questão:  

Cada mudança sucessiva no processo evolutivo gradual foi simples o bastante, relativamente à mudança anterior, para ter acontecido por acaso. Mas a sequência integral dos passos cumulativos não constitui absolutamente um processo aleatório, considerando a complexidade do produto final em comparação com o ponto de partida original (DAWKINS, 2005, p. 73). 
       O resultado desse processo cumulativo é que as transformações pelas quais passam os organismos de uma população tendem a tornar suas estruturas corporais mais úteis[32], em relação às de seus antepassados. Em outras palavras, por eliminar conformações nocivas, esse mecanismo asseguraria que o grau de perfeição encontrado num certo momento supere os estágios precedentes (DARWIN, 2006, p. 578).  
     Isso implica perfeição? Não. Dizer que um olho é “perfeito” significa o mesmo que afirmar (i) que ele é bem adaptado à sua função e (ii) que é mais eficiente em relação aos estágios estruturais anteriores. Até pouco tempo antes da publicação d’A Origem, Darwin advogava a favor de uma adaptação perfeita dos organismos ao ambiente, ou seja, durante essa época ele subordinava as mudanças evolutivas às modificações nas condições ambientais. Entretanto, Darwin mudou de concepção no início de 1857, conjecturando que se não existisse uma adaptação perfeita dos organismos ao ambiente, “haveria uma contínua busca por ajustes, no sentido de conseguir o máximo possível de eficiência no uso de recursos do ambiente” (BIZZO, 2007, p. 360). Por conseguinte, a seleção natural darwiniana, diferentemente do Deus de Paley, é incapaz de assegurar uma adaptação ambiental plena dos seres vivos, e a estrutura corpórea desses é sempre, pelo contrário, imperfeita (BROOKE, 2003, p. 198) – Deus projeta o ideal, a seleção natural molda o possível.  
        No que se refere especificamente ao olho humano, isso é suportado pela falta de perfeição desse órgão (DAWKINS, 2005, p. 143): ele forma uma imagem invertida, possui um ponto cego, deteriora-se com o passar do tempo e, para infelicidade de certas pessoas, alguns vêm com defeito de fábrica! Por que características nitidamente desvantajosas do ponto de vista de um simples engenheiro humano seriam levadas a cabo por um Deus sumamente inteligente, bondoso e poderoso? Essas imperfeições são explicadas satisfatoriamente, e até mesmo preditas, pela seleção natural, mas são mutuamente excludentes em relação a um planejamento divino. Sendo assim, Darwin é capaz de  explicar a adaptação “perfeita” do olho à sua função sem evocar, em momento algum, o Deus projetista, inteligente e intencional de Paley, substituindo-O pela seleção natural, um mecanismo cego, sem qualquer tipo de antevisão ou propósito (DAWKINS, 2005, pp. 23- 4). Em resumo, o olho, o imperfeito olho, é um desenho biológico, fruto de um processo natural, e não o resultado do desígnio de um Ser sobrenatural (DARWIN, 2006, p. 580): a ciência prescinde da teologia tanto para explicar o seu surgimento como o seu funcionamento.

5. Considerações Finais  

     De acordo com o que foi visto, concluo que o sucesso da concepção darwinista em explicar naturalisticamente os organismos vivos e as suas estruturas (seções 3 e 4) é suficiente para refutar o argumento do desígnio de Paley[33] (seção 2). Entretanto, o êxito daquela concepção não é o bastante para garantir a inexistência de Deus, inclusive do Deus pessoal invocado pelas religiões monoteístas. E isso se dá basicamente por três motivos:
(i) Não é possível provar ou refutar Deus a partir de dados empíricos[34]. Entre outras coisas, isso significa que por mais racionais que sejam os argumentos a favor e contra a existência de Deus, eles nunca serão definitivos para encerrar a questão: pessoas inteligentes e esclarecidas continuarão a defender pontos de vista diametralmente opostos sobre o assunto.
(ii) A teoria evolutiva não é necessariamente uma concepção ateísta. Mais do que isso, o próprio Darwin[35] não endossava essa concepção: o abandono da visão teísta de sua juventude não significou a defesa do ateísmo, pois, provavelmente, ele adotou uma posição agnóstica no final de sua vida. Cito duas passagens retiradas, respectivamente, de uma carta enviada para Asa Gray (22 de maio de 1860) e de sua autobiografia para ilustrar esse fato: 

Jamais foi a minha intenção escrever como um ateu. (...) Sinto, no mais íntimo de meu ser, que todo esse assunto é profundo demais para o intelecto humano. (...) Sem dúvida, concordo com você que minhas posições não são necessariamente as de um ateu (BURKHARDT, EVANS & PEARN, 2009, pp. 39-40).    
Não tenho a pretensão de lançar luz sobre esses problemas obscuros [relacionados a Deus]. O mistério do início de todas as coisas nos é insolúvel. Devo contentar-me em permanecer agnóstico (DARWIN, 2000, p. 81).   

(iii) Mesmo que fosse possível refutar empiricamente Deus, isso não se daria tendo em vista apenas a biologia evolutiva. A descendência comum e o mecanismo de seleção natural são eficazes para demonstrar que os seres vivos não foram planejados por Deus, mas não o são para provar que o Universo e suas leis não foram projetados por um Ser sobrenatural: os organismos biológicos são uma parcela temporal e espacialmente limitada dos seres materiais do Universo e é necessário, por conseguinte, mais do que uma explanação do domínio biológico para dar conta da totalidade do âmbito físico. 
      Por fim, queria terminar este texto lembrando que o mesmo Darwin que cursou medicina e se tornou um grande naturalista também estudou teologia e pretendia, assim como o fez Paley, seguir uma carreira religiosa. Porém, diferentemente da Teologia Natural escrita por seu conterrâneo, a obra de Darwin não foi recebida de modo amistoso pelos religiosos: “Considerando a fúria com que tenho sido atacado pelos ortodoxos, parece ridículo que um dia eu tenha pretendido ser pastor” (DARWIN, 2000, p. 49). Que feliz ironia! 

 6. Referências Bibliográficas 

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BROOKE, John Hedley. Darwin and Victorian Christianity. In: Jonathan HODGE & Gregory RADICK (Eds.). The Cambridge Companion to Darwin. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. 
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Texto originalmente publicado como o 3º capítulo (pp. 84-108) do livro Filosofia, Religião e Secularização, organizado por Antonio Glaudenir Brasil MAIA & Geovani Paulino OLIVEIRA (Porto Alegre: Editora Fi, 2015). Link para a leitura completa do livrohttp://media.wix.com/ugd/48d206_de70e326d1ea48509ced8df82cecf15e.pdf

[1] Agradeço a André Nascimento Pontes, Professor de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), pelas críticas e sugestões feitas a este texto.  
[2]  Ressalto que a temática sobre Deus é bem antiga e surgiu com a religião muito antes do aparecimento da filosofia (CORETH, 2009, pp. 16-27).
[3] Como observado por Eddy & Knight (2006, pp. ix-x), a divisão dos argumentos para a existência em três categorias (eles não mencionam o argumento kalam) é uma “ferramenta heurística útil”, contanto que não se esqueça de que tais argumentos frequentemente podem ser apresentados juntos, não sendo, portanto, “pacotes fechados”.
[4] O argumento kalam é proveniente de uma escola árabe do início da Idade Média e alguns estudiosos não o mencionam separadamente por o considerarem uma variante do argumento cosmológico (McGRATH, 2005b, pp. 298-300).
[5] A palavra inglesa “design” pode ser traduzida de duas formas nas línguas latinas (português, espanhol e francês): uma possibilidade é “desígnio” e a outra, “desenho”. Enquanto o uso dessa última não acarreta a inferência de qualquer propósito ou intenção, o mesmo não pode ser dito daquela primeira possibilidade de tradução. Portanto, é possível se afirmar que os organismos são desenhos biológicos sem se invocar qualquer desígnio para explicar os mesmos: “(...) a ideia que a seleção natural desenha os organismos sem desígnio algum não tem a aparência imediata de um contrassenso” (CAPONI, 2012, p. 64, grifos do original).
[6] A abordagem de Darwin explana a complexidade biológica em uma dimensão muito mais ampla e não apenas fragmentos da mesma. Utilizo a estrutura do olho como um exemplo ilustrativo do poder explanatório do paradigma darwiniano.
[7] O título completo em inglês é Natural Theology or Evidence of Existence and Attributes of Deity, collected from the appearances of nature.
[8] Ora, caso se leve em consideração que Deus – com todas as características que as três grandes religiões monoteístas Lhe atribuem – tanto decidiu se revelar através das escrituras sagradas quanto projetar-criar o mundo, tem-se a tão famosa metáfora dos dois Livros de Deus, respectivamente, o Livro Revelado e o Livro da Natureza e, consequentemente, duas formas de conhecê-Lo: o 1º “Livro” é objeto de estudo da teologia revelada (conhecimento completo de Deus), enquanto que o 2º “Livro” é estudado pela teologia natural (conhecimento parcial de Deus). Na verdade, a teologia natural não pretende provar a existência de Deus, mas já pressupõe que Ele exista, ou seja, a teologia natural depende da teologia revelada: “A busca de ordem na natureza não pretende demonstrar que Deus existe, mas apenas quer reforçar a plausibilidade de uma crença já existente” (McGRATH, 2005a, p. 170). Ver também Paley (2006, p. 280).
[9] McGrath, por exemplo, lista três (2005a, pp. 171-6) ou quatro (2011, p. 16) concepções abrangentes de teologia natural.
[10] John Ray publicou em 1691 um livro que é um marco dessa época – The Wisdom of God Manifested in the Works of the Creation.
[11] Constata-se claramente que Paley foi influenciado, entre outros, por William Derham, sendo sugestivo comparar os títulos do livro daquele (1802) com o deste (1713) – Physico-Theology: or, A Demonstration of the Being and Attributtes of God from his Works of Creation.
[12] Paradoxalmente, o sucesso da física de Newton, que era um teísta cristão, deu margem para uma interpretação deísta do Universo: sim, o Universo é um grande e complexo relógio, mas a sua manutenção e o seu funcionamento não dependem de um Deus pessoal. Paley foi o responsável por reabilitar e rearticular a metáfora do relógio em prol da existência do Deus cristão (McGRATH, 2005a, p. 129; 2011, p. 91). Vale a pena ressaltar que também é possível se extrair uma interpretação teísta da concepção newtoniana de Universo: as leis da natureza são um indício ou mesmo uma prova de que há um Legislador e este, por seu turno, pode “ser facilmente identificado com a, ou assimilado à, noção cristã de Deus” (McGRATH, 2011, p. 54).
[13]  O Deus defendido por Paley é tanto um Projetista quanto um Fabricador (McGRATH, 2011, p. 94).
[14]  É lugar comum na literatura apresentar o argumento de Paley como sendo uma analogia. A esse respeito, consultar Portugal (2006, p. 317), Eddy & Knight (2006, p. xviii) e Garrett (2008, p. 25), por exemplo.
[15] Sobre a “continuidade física e intelectual entre o jovem Darwin e Paley”, consultar McGrath (2011, pp. 155-7). De acordo com esse autor, a compreensão do pensamento do jovem Darwin só é possível caso se tenha em conta a influência nele exercida pelos escritos de, entre outros, William Paley. A esse respeito, ver também Gould (2002, pp. 116-21) e Olding (2003, pp. 6-10).
[16] “Em momento algum me preocupei com as premissas de Paley; aceitando-as em confiança, fiquei encantado com a longa linha de argumentação e convencido por ela” (DARWIN, 2000, p. 51).
[17]  Pode-se destacar na autobiografia de Darwin (2000) duas passagens que precedem à sua famosa viagem e outra que se refere a esse último período: “(...) como, naquela época, eu não tinha nenhuma dúvida sobre a verdade rigorosa e literal de cada palavra da Bíblia, logo me convenci de que nossa religião devia ser plenamente aceita” (pp. 48-9) / “Era profundamente religioso e tão ortodoxo que, um dia, disse-me que ficaria desolado se uma só palavra dos Trinta e Nove Artigos fosse alterada. Suas qualidades morais eram admiráveis, sob todos os aspectos” (pp. 55-6) / “Eu era ortodoxo na época em que estive a bordo do Beagle. Lembro-me de provocar gargalhadas em vários oficiais (embora eles mesmos fossem ortodoxos) por citar a Bíblia como uma autoridade incontestável numa ou noutra questão de moral” (pp. 73-4).
[18] “Logo que me convenci, no ano de 1837 ou 1838, de que as espécies eram mutáveis, não pude evitar a crença em que o homem devia estar sujeito a essa mesma lei” (DARWIN, 2000, p. 113).
[19] Em geral, não há qualquer dúvida que Darwin descobriu antes e fundamentou melhor do que Wallace o mecanismo por ele denominado de seleção natural. Um ano antes da publicação d’A Origem, foi tornado público a descoberta independente desse mecanismo e, portanto, o mesmo foi atribuído aos dois naturalistas (leitura de um trabalho conjunto na Sociedade Lineana em julho de 1858). Deve-se ressaltar que há quem negue que Wallace propôs um mecanismo evolutivo semelhante à seleção natural em seu artigo original de 1858 (CAPONI, 2009a).
[20] O título original do livro é On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life. Seguirei nessa exposição Waters (2003) e Caponi (2009b, especialmente o primeiro e o segundo movimento de sua versão do silogismo darwiniano, pp. 413-4). De acordo com Waters (2003, p. 121), A Origem das Espécies (1ª edição) pode ser dividida em três partes, a saber: (i) apresentação do argumento analógico da seleção artificial e das observações provenientes da história natural (capítulos 1-4), (ii) análise do conjunto de problemas enfrentados pela sua abordagem (capítulos 6-9) e, por fim, (iii) demonstração do poder explicativo de sua concepção científica (capítulos 5, 10-13).
[21]  Para Mayr (2006, pp. 113-32), não é correto referir-se a uma teoria de Darwin: o que existe, na verdade, é um paradigma darwiniano composto por cinco teorias independentes – entre elas, estão a descendência comum e a seleção natural, as quais explicam, respectivamente, a similaridade interespecífica e a adaptação ao ambiente. Segundo Caponi (2011, pp. 705-10), o programa adaptacionista (adaptação dos organismos às exigências ambientais) teve um papel secundário em relação ao programa filogenético (filiação comum na árvore da vida) logo após a publicação d’A Origem das Espécies, já que nesse período a tarefa principal era traçar filogenias e não identificar adaptações.
[22] Darwin redigiu o seu livro numa Inglaterra capitalista e industrial e, entre tantas outras, podem-se destacar aqui as influências de dois economistas britânicos, a saber, Adam Smith e Thomas Malthus. De acordo com o primeiro, o estabelecimento de uma liberdade natural possibilita que um determinado homem livre persiga os seus próprios interesses na competição com os demais indivíduos, desde que ele não infrinja as leis que regem a sociedade. Segundo Malthus, o poder de crescimento da população humana (progressão geométrica) é muito maior que o da produção de alimentos (progressão aritmética), e essa discrepância gera competição, cujo resultado é a fome, a miséria, o vício e a morte de alguns indivíduos.
[23] Darwin (2006) não sabia explicar como surgiam as variações nem possuía uma teoria que fosse capaz de explicar satisfatoriamente a transmissão das características hereditárias (ele defendeu uma teoria chamada pangênese, a qual foi contestada desde o seu tempo e há muito foi descartada). Sendo assim, ele estava consciente de sua limitação sobre as leis que regulam a variação e de que o resultado dessas leis é “infinitamente complexo e diversificado” (p. 456). Além disso, ele não sabia explicar o porquê da herdabilidade de certos traços e não de outros (p. 457).
[24] Darwin foi muito mal compreendido ao falar da semelhança existente entre esses dois processos, e ele tentou desfazer textualmente tal confusão nas edições posteriores d’A Origem (capítulo 4). Quando um pecuarista ou um agricultor manipula o cruzamento de animais e plantas com determinadas características, ele o faz intencionalmente. Portanto, a domesticação de animais e plantas envolve, literalmente, um processo de seleção, ou seja, de escolha consciente. Contudo, como não há qualquer tipo de propósito na sobrevivência diferencial dos organismos na natureza, apenas metaforicamente é que se pode utilizar o termo seleção.
[25] Note, em primeiro lugar, que há aqui simultaneamente dois aspectos envolvidos, a saber: a seleção dos lobos mais rápidos e a eliminação dos mais lentos. Em segundo lugar, observe que o sucesso de sobrevida dos indivíduos selecionados não implica que eles obterão, necessariamente, o mesmo êxito reprodutivo. Com isso, pode-se afirmar juntamente com Mayr (2006, p. 151) que a seleção natural é constituída por dois fenômenos diversos: “a seleção natural propriamente dita (seleção de sobrevivência) e a produção diferencial de prole devida à variação na capacidade de lidar com fatores ambientais que não sejam parceiros e seleção sexuais (seleção por sucesso reprodutivo) – especificamente, sucesso na competição por parceiros.”
[26]  Duas questões que estavam claramente separadas para Darwin são, muitas vezes, confundidas pelos adeptos do criacionismo. Um primeiro problema é saber como se originou a vida e o outro, – relacionado ao primeiro, mas distinto dele – é explicar como, após o surgimento da vida, surgem novas formas orgânicas. O processo de diversificação biológica (2ª questão) foi explicado por Darwin através da atuação da seleção natural em uma ou algumas poucas espécies iniciais: “(...) esse processo de divergência poderia ter seu ponto de partida em um conjunto muito reduzido de formas primitivas ou, inclusive, em uma única forma; forma essa cuja origem, claro, a própria teoria da seleção natural não poderia explicar. Ela é uma teoria sobre a origem das espécies e não sobre a origem da vida” (CAPONI, 2009b, p. 412).
[27] Para ser mais exato, o diagrama da figura 1 representa apenas um corte abstrato ou ampliação de uma pequena região da árvore da vida.
[28] Como dito anteriormente, Paley influenciou bastante Darwin. Essa influência pode ser detectada no estilo argumentativo, na escolha das palavras e, até mesmo, nos exemplos utilizados (talvez inconscientemente) por Darwin. Cito apenas dois dos paralelos apontados por Gould (2002, pp. 118-21): (i) Ambos se baseiam na comparação e na extrapolação do artificial para o natural, defendendo, além disso, que o mecanismo que atua na natureza (desígnio divino e seleção natural) é mais potente que o artificial (desígnio humano e seleção artificial), e (ii) tanto Paley como Darwin se utilizam de exemplos semelhantes nas suas argumentações: ambos analisam o olho e o comparam com o telescópio, para ficar somente em um exemplo (PALEY, 2006, p. 16; DARWIN, 2006, p. 570).
[29] Dawkins (1998, especialmente o capítulo 3) propõe a parábola do monte Improvável para explicar esse ponto. Imagine que no cume dessa elevadíssima montanha hipotética se encontrem seres e estruturas biológicas complexas, como é o caso do olho. Além de alto, o monte é bastante íngreme, o que desencoraja qualquer alpinista sensato. Todavia, caso se observe mais atentamente, ver-se-á um declive gradual por trás da encosta íngreme citada anteriormente. Existem duas alternativas básicas caso se queira atingir o ápice do monte Improvável: um salto único da base para o topo, que seria o equivalente de projetar e fabricar o olho de maneira instantânea (Paley), ou por meio de uma escalada lenta, contínua e gradual, o que representaria o processo evolutivo (Darwin). Este é, para Dawkins (1998, p. 219), o único meio plausível, e a “seleção natural é a pressão que impulsiona a evolução rumo ao topo do monte Improvável.”
[30] A ausência de uma explicação genética adequada para as variações foi a responsável por uma série de questionamentos justificáveis ao arcabouço teórico proposto pelo naturalista inglês: “Em todos os seus brilhantes devaneios, Darwin não chegou a descobrir o conceito básico sem o qual a teoria da evolução é inútil: o conceito de gene. Darwin não tinha uma unidade adequada de hereditariedade, e a descrição que fez do processo de seleção natural, portanto, estava infestada de dúvidas totalmente razoáveis quanto à sua possibilidade de funcionar” (DENNETT, 1998, p. 20).
[31]  Como mencionado, de acordo com Darwin (2006, p. 574), a seleção natural atua preservando a vida dos indivíduos mais aptos e destruindo aqueles que possuem traços desfavoráveis. Além disso, vale a pena mencionar que a seleção natural não é capaz de produzir uma estrutura que seja exclusivamente benéfica ou maléfica aos indivíduos de outra espécie. Caso se observe uma estrutura desse tipo na natureza, é porque ela é vantajosa, antes de tudo, à espécie que a possui (DARWIN, 2006, pp. 580-1). Uma breve análise de parasitas e animais polinizadores, por exemplo, é suficiente para atestar esse ponto.
[32] Paley também defende que a estrutura biológica é útil ao organismo, porém essa utilidade é assegurada pelas características da personalidade divina, tais como a inteligência, a benevolência e a onipotência – Deus sabe como, quer e pode projetar um organismo que funcione bem – e assim Ele o fez repetidas vezes, como testemunham as Suas “obras da natureza”. Dessa maneira, os organismos não apenas foram projetados pelo Criador, mas, deve-se acrescentar, foram projetados a partir de “propósitos benéficos” (PALEY, 2006, p. 243; McGRATH, 2011, p. 96).
[33]  Hume, ou melhor, Philo (ou Fílon), já havia lançado fortes críticas ao argumento do desígnio antes mesmo de Paley ter elaborado a sua própria versão desse argumento (HUME, 2012, pp. 96-109). Alguns exemplos são: (i) mesmo que o mundo tenha sido criado por um Ser sobrenatural, isso não é o suficiente para assegurar que esse seja o Deus pessoal cristão que Paley tinha em mente; (ii) os argumentos de Paley são perfeitamente compatíveis com a existência de vários Projetistas; e, por fim, (iii) a observação atenta de nosso mundo é o bastante para mostrar que ele é defeituoso e imperfeito.
[34] Discordo, portanto, que “‘A Hipótese de que Deus Existe” é uma hipótese científica sobre o universo” (DAWKINS, 2007, p. 24). A despeito de Dennett se alinhar em muitos pontos à posição de Dawkins, ele está ciente de que ter sucesso em atacar um argumento para a existência de Deus não comprova Sua inexistência (DENNETT, 2007, p. 139). E isso se aplica à perspectiva darwiniana: ela não prova a inexistência divina, mas apenas nos mostra que “não temos nenhuma boa razão para pensar que Deus existe” (DENNETT, 2007, p. 147). Nesse quesito, penso que a posição de Dennett é mais sensata.
[35] Para Dawkins (2007), o correto entendimento da ciência, no geral, e da biologia evolutiva, em particular, leva necessariamente ao ateísmo. Ele sustenta que antes da concepção darwinista o “ateísmo até poderia ser logicamente sustentável, mas que só depois de Darwin é possível ser um ateu intelectualmente satisfeito” (DAWKINS, 2005, p. 25). Poder-se-ia perguntar o seguinte para Dawkins: a insatisfação intelectual de Darwin com uma visão ateia significa que ele não compreendeu corretamente a sua própria teoria?

*As informações e ideias contidas neste artigo são de total responsabilidade do seu autor. 

segunda-feira, 15 de junho de 2015

1º Semana Nacional de Filosofia (UFAL)


O curso de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas promoverá a 1ª Semana de Filosofia da Ufal durante o Caiite 2015, que será realizado no Centro Cultural e de Exposições Ruth Cardoso, em Jaraguá. O evento vai promover o debate filosófico-acadêmico em âmbito nacional e vai trazer para Maceió pesquisadores e alunos de outras instituições brasileiras.
O evento é coordenado pelos professores Marcus José Souza, Flávia Benevenuto, Maxwell Lima Filho e Henrique Cahet. Na programação, haverá atividades à tarde e à noite, entre os dias 15 e 19 de junho. A conferência de encerramento será sobre Tecnologia, Capital e Ética, ministrada por Manfredo Araújo de Oliveira, da Universidade Federal do Ceará (UFC), às 19h. Confira em a programação completa no link abaixo.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

The Wall e uma reflexão acerca do mecanicismo escolar


Autora: Felini de Souza
 Contato: felini_92@hotmail.com

RESUMO

Falar dos problemas da educação parece que já virou clichê. Fala-se sobre isso há muitos anos, contando com a ideia de “Ensino Enciclopédico” de Nietzsche. Analisando o filme The Wall e fazendo um paralelo com os conceitos de Paulo Freire a respeito do ensino e aprendizagem, consegue-se ter uma visão de que a educação é aplicada para um fim comum a todos os alunos, fim este que na atualidade podemos entender como sendo a prestação do concurso vestibular. A necessidade que a escola vê é apenas de levar o aluno à memorização de conteúdos para responder as questões. Uma reflexão em torno dessa sistemática da escola e da educação deve ser feita por aqueles que compõem a escola, ou seja, todos.

Palavras-chave: Educação. Ensino. Aprendizagem. Vestibular. Reflexão.

O sistema educacional brasileiro sempre entra em discussão, principalmente durante o período de eleições. As promessas de mais escolas, escolas de qualidade e boa remuneração ao professor sempre são citadas nesses períodos, porém durante décadas a educação vem sendo debatida, como uma necessidade mal empregada na sociedade. Autores como Paulo Freire e Nietzsche teorizaram sobre pontos até hoje muito atuais e que dizem respeito às problemáticas da educação e da escola.
E de quem é a culpa pelos problemas da educação? Da escola? Dos professores? Dos alunos? Da sociedade? Ou do governo? Essas perguntas não são facilmente respondidas, pois existem vários pontos e amarras que entrelaçam essas relações existentes na escola.  A escola é reflexo da sociedade que está ao seu redor e é um reflexo também do contexto familiar dos alunos. Levando isso em conta, é preciso estabelecer uma ligação entre os conteúdos passados em sala e a realidade vivenciada pelos estudantes. Formar o aluno não é simplesmente treiná-lo para os concursos e vestibulares.
O processo de ensino não se dá simplesmente por transferência de conhecimento. Quando se associa a realidade do aluno ao processo da educação escolar é possível construir muito em cima do conteúdo passado pelo professor.
[...] na experiência de minha formação, que deve ser permanente, começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem me considero o objeto, que ele é o sujeito que me forma e eu, o objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os conhecimentos – conteúdos – acumulados pelo sujeito que sabe e que são a mim transferidos. Nesta forma de compreender e de viver o processo formador, eu, objeto de meu ato formador. É preciso que, pelo contrário desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos [...]. (FREIRE, 1996,p. 22-23.)
É necessário levar em consideração os conhecimentos culturais vividos pelos alunos. Por meio desse conhecimento é possível construir um entendimento melhor a respeito do que é passado em sala de aula. Não existe professor sem os alunos, assim como não existe o “ensinar” sem o “aprender”.  Portanto, o professor deve ter uma postura democrática, visando reforçar a capacidade crítica do educando e sua curiosidade.
No filme The Wall (1982) do diretor Alan Parkner, temos a demonstração do que é uma cultura educacional conservadora e tecnicista, em que é preciso apenas repetir os ensinamentos do professor a ponto de decorá-los. Não há criação, apenas repetição. O personagem principal do filme, chamado Pink, durante a infância, cria um poema que é lido de forma pejorativa pelo professor. Uma demonstração de uma atividade docente que nega as origens, ideias e criações de seus alunos.
Em The Wall, o professor de Pink não instiga os alunos a buscarem o conhecimento, não os torna inquietos a ponto de que haja uma procura por parte deles, somente se vê a repetição, a criação de padrões de mentes. Suas potencialidades são deixadas de lado, dando vez apenas às “frases” decoradas.
Daí a impossibilidade de ver a tornar-se um professor crítico se, mecanicamente memorizador, é muito mais um repetidor cadenciado de frases e de ideias inertes do que um desafiador. (FREIRE, 1996, p.27).
O professor que utiliza como um meio apenas a memorização do aluno quanto aos conteúdos, não consegue dar a liberdade de criação e de assimilação do mundo em que o aluno vive. Um dos deveres da prática educativa é o desenvolvimento da curiosidade insatisfeita e crítica do aluno. E é por meio da curiosidade que atingimos a criatividade.
A criatividade e a autonomia do aluno devem ser respeitadas, assim como sua identidade, e na prática educativa é preciso ser coerente com esses deveres. Em The Wall, os alunos são representados em uma das cenas com máscaras iguais, demonstrando assim que suas potencialidades e identidades não são respeitadas. E a escola, no filme, tem ainda o caráter de formá-los para serem “mais um tijolo do muro”.
Quando falamos em “mais um tijolo no muro”, isso nos remete a uma formação mecânica que visa um único fim a todos os alunos. Na prática, atualmente, podemos observar que o fim comum das escolas tem sido a boa pontuação no vestibular que leva à aprovação dos alunos nas universidades. As publicidades apelativas que mostram números de aprovados chamam a atenção dos pais e dos alunos que sonham estar nos melhores cursos das universidades. Esse tipo de aprendizado mecânico é condenado pelo filósofo alemão Friendrich Nietzsche. Nietzsche em Schopenhauer como Educador tratado “ensino enciclopédico” mais ligado a área da Filosofia. Segundo Nietzsche a Filosofia estava sendo ensinada distante da realidade dos jovens estudantes e o resultado era que os jovens decoravam os sistemas e suas refutações antes da prova de avaliação e esqueciam-se de tudo logo após a avaliação. Nietzsche, portanto, desconsidera o sistema educacional de sua época, que tem como intenção formar “homens teóricos”, que separam o pensamento da vida. O professor Nietzsche, não incitava em seus alunos o simples acúmulo de conteúdos, ao invés disso, propunha um desenvolvimento do senso crítico e da atividade criadora de cada indivíduo.
Nenhuma matéria escolar deve ser ensinada de forma mecânica, forçando o aluno a decorar fórmulas e conceitos.
O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada enquanto fala ou enquanto ouve. O que importa é que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos. (FREIRE, 1996, p.86).
A curiosidade ultrapassa os limites do aprendizado mecânico. Curiosidade é uma característica vital que proporciona descobertas. Por meio das perguntas e indagações os alunos vão construindo ou reconstruindo suas opiniões. Esse é o papel principal das aulas de Filosofia, pois elas precisam ser questionadoras para que desse modo o aluno encontre meios e soluções para os problemas filosóficos.
No entanto, temos que lembrar que a culpa pelos problemas da educação não se devem somente ao modo de ensinar do professor. No filme The Wall, o professor “desconta” em seus alunos a opressão que ele sofre de sua esposa. A esposa do professor, no filme, é uma representação do sistema que leva o professor a ter que cumprir ordens, como a de limitar a liberdade de criação do seu aluno levando ele a decorar fórmulas e conceitos. Sem contar a falta de estrutura para a educação que algumas escolas sofrem e a falta de incentivos aos professores no desempenho das suas funções como educadores, algo que também é representado pela figura da esposa do professor de Pink.
A função comum atual da escola é o vestibular, visando também o mercado de trabalho, bons salários e boas vagas de emprego; no entanto, tendo a utilidade da escola com esses fins é possível notar como as capacidades individuais dos alunos são deixadas em segundo plano. Todos são colocados da mesma forma aos mesmos conteúdos, deixando de levar em consideração dificuldades ou facilidades pessoais perante algumas temáticas ensinadas na escola. Esse tipo de postura da escola, que tem como “produto final” o indivíduo que será útil ao mercado de trabalho é criticado por Nietzsche, a sabedoria que tem como função a produção sem a reflexão é uma sabedoria vaga.
[...] Mas essa sabedoria está podre e cada fruta tem seu verme. Acreditem em mim; quando quisermos que os homens trabalhem e se tornem úteis na oficina da ciência, antes de terem atingido a maturidade, arruinamos a ciência no mais breve prazo, assim como arruinamos os escravos empregados muito cedo nessa oficina. Lamento que sejamos obrigados a nos servirmos da gíria dos proprietários de escravos e dos empregadores para descrever condições de vida que deveriam ser imaginadas depuradas de todo utilitarismo e ao abrigo das necessidades da existência. Mas involuntariamente expressões como “oficina”, “mercado de trabalho”, “oferta e demanda”, “exploração” [...] saem da boca quando queremos descrever a mais jovem geração de sábios. A honesta mediocridade se torna sempre mais medíocre; a ciência, do ponto de vista econômico, sempre mais utilitária. (NIETZSCHE, p. 86 - 87)

Os cursinhos pré-vestibular que focalizam em um ensino rápido de um acúmulo de conteúdos que deveriam ter sido dados desde o ensino básico, propondo formas de decorar que são por vezes vazias, para apenas garantir que o aluno, ainda sem muito conhecimento prático de vida e sem assimilar o conteúdo com situações cotidianas, passe no vestibular e produza na mesma rapidez em que seu conhecimento foi produzido.

Precisamos tratar dos problemas da educação, sabendo que ela mesma é a solução para vários problemas da sociedade. A educação precisa ainda ser muito pensada para que as pessoas que a compõe e fazem parte dela cobrem soluções e também sejam elas mesmas as soluções para tais problemas, tendo em vista a Filosofia como uma portadora da visão crítica em cima dessas problemáticas e valorizando essa matéria como todas as outras que fazem parte do currículo da educação escolar. A reflexão sobre a educação já é o primeiro passo para uma mudança.

REFERÊNCIAS


DIAS, Rosa Maria. Nietzsche educador. São Paulo: Editora Scipione, 1993.


FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 30. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1996.


GALLO, Silvio. Chegou a hora da filosofia. In: Revista Educação, set/2011. Disponível em: <http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/116/artigo234074-1.asp>. Acesso em: 17 out. 2013.


The Wall (O muro). Direção de Allan Parke. Música de Pink Floyd. EUA, 1982.


NIETZSCHE, Friedrich W. Segunda Consideração Intepestiva. Da Utilidade e do Inconveniente da História Para a Vida. Trad. Antônio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala. 2008.







Sobre a autora:

Mestranda na área da Ética e Filosofia Política da PPGFil-UFSC. Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. E-mail: felini_92@hotmail.com.

*As informações e ideias contidas neste artigo são de total responsabilidade do seu autor(a).

terça-feira, 19 de maio de 2015

FILOSOFIA DEBATE: METAFÍSICA.


O centro acadêmico de filosofia, nos usos de suas atribuições, promoverá  na próxima Quarta Feira (27), um mega debate acerca da existência de Deus.
Na oportunidade, convidamos a todos da comunidade acadêmica e demais interessados para se fazerem presentes, o debate será aberto a todos e a inscrição será feita na hora.

Sobre os debatedores:

DRº RICARDO RABENSCHLAG: 

Bacharel em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre em filosofia da linguagem/filosofia da lógica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Doutor em Filosofia da matemática/filosofia da lógica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com período sanduíche em University Of Virginia.  

MSº JOSÉ URBANO: 

Bacharel em filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco, Mestre em filosofia medieval com especialidade em Tomás de Aquino pela Universidade Federal de Pernambuco.

MSº MAXWELL MORAIS:

Bacharel em ciências biológicas pela Universidade Federal do Ceará, Mestre em filosofia da biologia/filosofia da mente pela Universidade Federal do Ceará e Doutorando em filosofia da mente pela Universidade Federal do Ceará.
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LOCAL: Auditório do ICHCA - Universidade Federal de Alagoas, campus A.C Simões. (Bloco de História).
DATA: 27/05/2015
HORÁRIO: 19:00
__________________________

Ps: Passado o tempo de fala dos três debatedores, serão abertas as rodadas de perguntas:
* As perguntas serão feitas em blocos, sendo permitido no máximo 5 perguntas por vez.
* Serão realizados 4 rodadas (blocos) de perguntas.
* As perguntas terão um tempo limite de 2min e 30s para serem concluídas. 

NÃO PERCAM!

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Uma tradução livre do alemão de uma carta de Sigmund Freud endereçada a Wilhelm Fließ: ou as questões sobre as bruxas e os neuróticos



Autor: Yvisson Gomes dos Santos
Contatoyvissongomes@hotmail.com. 





RESUMO: a presente carta de Freud destinada a seu amigo Fließ é considerada uma escritura capital do pai da psicanálise em relacionar os sintomas neuróticos com as crendices populares na busca de se compreender as relações do sinto(mal) com a cultura do sujeito moderno. Vale salientar que a tradução da presente Carta de Freud foi-me possível devido as aulas de Alemão Instrumental I e II que cursei no curso de filosofia da UFAL, tendo como professora destas duas disciplinas eletivas Irene Maria Dietschi (FALE/UFAL).

PALAVRAS-CHAVE: Carta, Freud, Cultura.

Para Freud não era interessante e nem adequado limitar o estudo das histerias ou de outras neuroses pelo viés organicista. A ideia do vienense foi de despertar em seu leitor as relações do mito, da literatura, do folclore, da sociologia, da filosofia, dentre outros, com as investigações psicanalíticas que pudessem apresentar-se, nem que sejam metaforicamente, com o sintoma.
Os sintomas neurótico, psicótico e perverso tinham caminhos distintos na constituição do sujeito. Ser neurótico era aceitar a barreia da castração, já ao psicótico seria a forclusão e ao perverso, burlar, ludibriar e denegar a metáfora paterna. Esses vieses distintos devem ser considerados na arquitetura freudiana como elementos axiais ao que se convencionou chamar de epistemologia psicanalítica.
Os primeiros escritos de Freud foram organizados principalmente, aqui no Brasil, pela Editora Imago. Optamos por traduzir Briefe an Wilhelm Fließ diretamente do alemão para nossa língua vernácula. Além da tradução da Imago (português), temos da Amorrortu Editores (espanhol). Boas traduções, mas que, ao nosso entender, necessita-se de uma maior ênfase à simplicidade e, ao mesmo tempo, à cumplicidade de Freud com seu discípulo e amigo testamentada em escritura. Advertimos que não há pretensões outras nesse empreendimento, mas apenas a necessidade de um novo olhar sobre o referido documento.
Considera-se que toda tradução implica um comprometimento do tradutor, ora ele pode fazer-se traidor do texto, ora ele pode dar uma leitura hermenêutica através sua formação cultural e estilística. Essa última opção me dispus a fazer.
Escolhemos, na presente tradução, pelo estilo informal do texto de Freud (já que se tratava de uma carta ao seu amigo pessoal) pelos meus vieses estilísticos.
Sabemos que a palavra estilo do latim stilum que pode se desdobrar metonimicamente na palavra estilete; e é nesse sentido que o estilo corta, perfura, risca certo tecido de palavras e discursos que perfazem uma colcha de retalhos linguísticos (o estilo é de Freud, e tentamos a contento fazer permanecer e aclarar o estilo do pai da psicanálise).
É de nota que o presente texto de Freud algumas vezes se apresenta em forma de rabiscos, seguido por reticências, mas que forma um apanhado das inquietações de Freud à época oitocentista. Preferimos deixar a carta tal como ela se apresentava, a saber, de uma forma coloquial e sem figuras de linguagens inapropriadas, ou seja, um escrito que saboreia o estilo freudiano de escrever em suas incursões sobre os sintomas e patologias inerentes ao século XIX (aprioristicamente).

TRADUÇÃO DO ALEMÃO
A Carta [...][1]
 [...] A ideia de trazer as bruxas na história ganha vida. E por outra parte a considero bem sucedida. Os detalhes começam a se proliferarem. O “voar” está esclarecido, a vassoura sobre a qual elas cavalgam é provavelmente o grande Senhor Pênis. Nos encontros das reuniões secretas, com dança e divertimentos, pode-se observar isto todos os dias nas ruas onde crianças brincam. Certo dia li que o ouro que o diabo oferta as suas vítimas geralmente se transformam em fezes; num certo dia, o Senhor E, me disse de maneira repentina sobre os delírios de dinheiro de sua [antiga] babá (e por um desvio Cagliostro-orifício-merda) que o dinheiro de Louise era sempre fezes. Destarte, nas histórias de bruxas o dinheiro volta a transforma-se na substância na qual ele foi gerado. Ah, se soubesse porque o esperma do diabo sempre é qualificado como “frio” nas confissões das bruxas! Encomendei o Martelo das Feiticeiras (Malleus maleficarum), e agora que dei o último curso sobre as paralisias das crianças, estudá-lo-ei com afinco. A história do diabo, o léxico popular dos palavreados de insultos nas canções infantis sobre o malfazejo, tudo isto tem me interessado em particular. Você poderia me indicar sem esforço, através de sua admirável memória, alguma boa bibliografia sobre o referido assunto? Sobre as danças e as confissões das bruxas, recordo-lhe sobre as epidemias das danças das feiticeiras na Idade Média. A Louise do Senhor E. era uma dessas bruxas que dançavam, e ele costumeiramente se recorda dela quando assiste a um balé, seguindo-lhe de angústia ao ver uma peça de teatro.
O voar, o flutuar, correspondem aos expedientes acrobáticos nos ataques histéricos dos meninos etc.
Se me permite uma opinião: nas perversões, cujo negativo é a histeria, podemos pensar que houve em certo momento uma relação de um culto sexual que possivelmente se tornou religião no oriente semítico (Moloch, Astarte). [...]
As ações perversas são, além disso, sempre as mesmas, e providas de sentido e construídas segundo algum paradigma que será preciso apreender.
Desta feita, imagino uma religião do diabo, na antiguidade primordial, cujos ritos se estenderam em segredo, e assim eu concebo severo tratamento dos juízes às bruxas. E as investigações se proliferam.
Outro tópico da corrente principal que defendo deriva-se da seguinte consideração: existe uma classe de pessoas que nos dias atuais narram histórias análogas de bruxas, também os pacientes contam tais histórias, mas não encontram respaldo nos outros que não creem nas mesmas, mas, mesmo assim, a crença sobre tal tema permanece inabalável. Me refiro, como você deve ter imaginado, ao paranoico, que em suas queixas delirantes relacionam comida com merda, e dizem que foram maltratados a noite de maneira desprezível e sexual, no qual tudo isto faz parte de seu conteúdo mnemônico, etc. Você sabe que tenho distinguido o delírio de recordação do delírio de interpretação. Este último está vinculado ao recurso impreciso em relação aos criminosos, que por sinal estão abrigados pela defesa.
Ainda um detalhe: na histeria, tem-se o pai com uma elevada demanda de amor pelos seus filhos, ocorrendo, algumas vezes de forma contrária, um sentimento de humilhação perante o amado (pai), ocasionado uma impotência por não poder se casar devido a um ideal insatisfeito. Explico: a grandiosidade do pai inclina-se de forma condescendente a criança, algumas vezes retraindo-a. Compare esta combinação: paranoia, delírios de grandeza e a dúvida fantasiosa com relação se a criança é verdadeiramente filha de seu pai. É o reverso da medalha.
Tudo isto, ainda assim, torna-se incerto a sustentar tal conjectura, ou seja, que a escolha da neurose estaria condicionada pelo seu tempo de origem (gênese), mas ao invés disso parece ter se fixado na primeira infância. Mas essa definição é sempre oscilante entre o momento do nascimento e o tempo da repressão (sendo este último, o meu preferencial).
***
Considerações Finais

A escritura freudiana nesta carta estava em gérmen. Não à toa que ela faz parte também dos escritos pré-psicanalíticos do autor.
O que versa a Carta é a relação que Freud inquire sobre o imaginário popular das bruxas e dos neuróticos. As danças, a vassoura onde as feiticeiras voavam, os sortilégios e divertimentos têm, segundo o psicanalista, relação com as brincadeiras infantis. Os elementos físicos que as bruxas ofereciam aos incautos, como o ouro, poderiam ser ligados metonimicamente as fezes, e assim por diante. Freud nesta Carta demonstra o interesse sobre o estudo das feiticeiras, e pede a seu discípulo e amigo material bibliográfico para estudar mais detalhadamente tal assunto.
É de nota que tal Carta parte de uma inquietação de Freud sobre este universo folclórico nascido do medievo, e que nos dá pistas, mesmo que neófitas, de que os sintomas neuróticos e paranoicos têm correspondentes com a imago paterna.
Essa Carta, em síntese, deve ser vista como uma das tentativas de Freud para se fazer entender o que viria a ser futuramente a repressão ligada com as fixações pré-genitais no desenvolvimento psicossexual do sujeito: parte essencial da construção sinto[mal] do neurótico.


 Sobre o autor: É psicólogo (CRP15/1795) e licenciado em filosofia pela UFAL. Especialista em Linguística pela UNICID/AAL. Atualmente é mestrando em Educação pela UFAL.  

Referência
FREUD, S. Briefe an Wilhelm Fließ. 1887-1904. Hg. Von J.M. Masson. Frankfurt am Main: Fischer, 1986.






[1] FREUD, S. Briefe an Wilhelm Fließ. 1887-1904. Hg. Von J.M. Masson. Frankfurt am Main: Fischer, 1986. S. 194-195.

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