domingo, 8 de março de 2015

O corpo: Esse nosso amigo (des)conhecido - Alguns apontamentos


Autor: Yvisson Gomes dos Santos
Contato: yvissongomes@hotmail.com


RESUMO: o presente artigo teve a finalidade de elencar o corpo em suas diversas vicissitudes. Dando enfoque a teorias da psicanálise, bem como da filosofia em seus matizes conceituais. Com as concepções de corpo pensou-se no corpo-escola como um dos desdobramentos teoréticos partidos dos campos da psicologia profunda e das filosofias contemporâneas e extemporâneas.
PALAVRAS-CHAVE: Corpo, Psicanálise, Filosofia, Escola.

ABSTRACT: The present trial was to list the purpose of the body in its various vicissitudes. By focusing on theories of psychoanalysis and philosophy in its conceptual nuances. With the concepts of the body was thought the body-school as one of the parties Theoretical developments in the fields of depth psychology and contemporary philosophies and extemporaneous.
KEYWORDS: Body, Psychoanalysis, Philosophy, School.

O corpo para a psicanálise tem alguns endereços que se localizam desde a fisiologia até a linguagem. Quando falamos de fisiologia ou de anatomofisiologia nos referimos ao corpo escrutinado pela biologia, pela medicina e ciências afins. Já quando o colocamos no patamar da linguagem referendamo-nos na fala e no discurso sobre este corpo.

Com Freud aventamos a ideia de que o corpo se forma na psique, entretanto nasce e se estrutura metaforicamente das pulsões parciais[1]. O contato da criança com o mundo exterior se dá mediante um “holocausto” psíquico. O mundo que entendemos como a percepção de uma realidade externa, de uma empiria para uma epistemologia, na criança isto se dá de forma paulatina e ao mesmo tempo inquietante.

O autoerotismo do recém-nascido até determinado período psicossexual é uma realidade para a psicanálise. A criança somente conhece-se em torno de seu mundo corporal. A boca e a mucosa anal são etapas iniciais do desenvolvimento psíquico desse infante (aquele que não tem voz, não tem fala). Ao descobrir-se na existência de um outro, de uma mãe que a nutre e lhe dá afagos, esta criança se espanta -  e o espanto sempre será o Pathos da filosofia, segundo Heidegger[2]. Já este espanto em Freud parte do princípio de que a pequena-criança não está sozinha em seu mundo oceânico. Ela está inserida num sistema relacional de afetos benfazejos ou malfazejos, mas que são afetos que a colocam no campo do dual.

Esse holocausto do ser autossuficiente para o ser que depende de outro determina a separação do autoerotismo em direção ao narcisismo[3]. A ideia é de se pensar que a criança fantasticamente que se nutria e se sentia nutriente de si mesma, na qual não necessitava de uma outra personagem em sua instância psíquica e relacional, agora com o narcisismo se encontra dependente, de fato, desse outro.

O narcisista diz o seguinte: “Necessito do outro, desse que me acalanta, mas posso com este outro me sentir único e invencível”. É uma etapa de fruição dos conteúdos ideativos da criança que são, a priori, saudáveis.

O sujeito se forma e se informa de si através de seu narcisismo. A relação do espelho ou a relação especular proposta por Lacan estabelece a cisão, a escansão de que há um outro que partilha com o infante sua atmosfera psíquica. A criança se vê no espelho, esse acessório de cobiça, e se questiona se ela é um corpo que se mostra em um objeto especular, fora-de-si-mesma através do olhar, ou por que não dizer de uma pulsão escopofílica.

Um passo se é dado para a construção do psiquismo da criança e na sua ulterior constituição como sujeito que se alia ao socius para se fazer existir, nem que seja uma ex-sistência que obriga a criança a olhar para fora de si e dizer: “necessito do outro, e este outro me registra nas convenções, nos modelos  e etiquetas de comportamentos que preciso apreender para me fazer demarcado pela pequena sociedade (o núcleo familiar),  em rumo a grande sociedade (escola, igreja, shopping, clubes recreativos, cibercultura, dentre outros)”.

O passo para liberta-se de seu autoerotismo ao narcisismo encontra ancoradouro, a saber, na percepção de que o mundo real, de acordo com Locke -  o mundo dos sentidos -, é necessário para que eu exista enquanto ser social. As experiências desse sujeito extrapolam o mundo interno e se coadunam com a exterioridade como uma necessidade iminente de SER nesse EXISTIR que tumultua.

O corpo agora se mostra como imprescindível. O corpo surge de uma forma que transforma-se a cada instante. O ego em ilhotas do autoerotismo, agora se mostra como um ego factual perpassado pela Falicismo, por uma lei que demarca individualidades e que funda e estrutura personalidades e possíveis patologias.

Nesse intento, sabe-se que a psicopatologia do corpo, nos anos 60 do século passado, com Kretschmer (1961)[4], equivalia a tipologias. Com este autor o sujeito possuía caracteres corporais que denunciavam uma futura doença um traço de caráter. Temos o corpo leptossômico ou astênico, o corpo pícnico e o corpo atlético.

O leptossômico é de uma estrutura esguia, alta, de ossatura curta, podendo caracterizar uma futura esquizotipia e timidez. O pícnico é de um corpo de forma arredondadas, ossos largos, gorducho e bonachão. Essa tipologia pícnica é caraterizada por pessoas sociáveis, engraçadas e gregárias, mas com tendências a depressão. A forma atlética é de um corpo considerado em boa forma física, com ossatura larga e avantajada. Tais pessoas possuem caráter de liderança e que estão com as potencialidades físico-psíquicas em equilíbrio. A aos que não se enquadram nessas três classificações são considerados do tipo displásicos.

Claro que estas tipologias dos corpos foram descartadas pela medicina do século XXI. Ainda assim, a psicologia, em casos específicos, se referencia nessas tipologias para estudar prováveis sintomas e estilos comportamentais dos indivíduos.

Esses exemplos advêm de pesquisas da antiguidade tardia sobre os humores. Galeno caracterizou em fartos comentários sobre os humores biliáticos nos seres humanos, podendo-se caracterizar nos mesmos sintomas como a melancolia, a ira ou a própria loucura.

No retorno a Freud e, mais especificamente a Lacan, o corpo é fissurado, separado, cindido em objetos a que se escamoteiam em seios, fezes, voz, olhar[5]. Só se é possível reaver o corpo total, ou o corpo do desejo se se objetivar o discurso como norteio para explicá-lo, e ainda assim isso não será possível por completo, mas através de rastros ou palpites da ordem do inconsciente, quer sejam atos falhos, chistes, sonhos, ou a própria doença somática na histeria, a analidade na neurose obsessiva-compulsiva ou a neurose fóbica como prelúdio à angústia de castração.

Eu falo através do Phalos que me estrutura. O Phalos com ph é uma representação ora imaginaria, ora simbólica do pênis. Essas representações se formam no orbe do psiquismo indo ao encontra da subjetividade. Ou seja, ao falar sobre a diretriz do Phalos que representa a metáfora ou lei paterna, nascida culturalmente do banquete totêmico, eu EXISTO e essa existência é da ordem simbólica que nasce da imagem especular corpo-eu ou do eu-corpo.

Deleuze[6], em um dos seus escritos, anuncia que a Coisa ou o Isto caga, fede, goza, mela-se num apinhado do corporal-máquina. A coisa, Das Ding, em Freud é o que sutura o inconsciente do sujeito. E essa sutura promove inevitavelmente a cura. E o artifício pela qual a Das Ding se faz fundante é através da palavra e do discurso. Não somos nada se não discursarmos, se não proferirmos nossos sentimentos e ideias, pois desta sorte, a doença encontrará assento.

Os gregos falam do corpo em evidência e erotizado, instrumento discursivo de uma pedagogia interessante. Um belo corpo pode facilmente se aliar a um belo discurso. O Banquete[7] de Platão comemora esse encontro. O corpo de Alcebíades mesmo embriagado e com vestimentas risíveis é belo, e o discurso de Sócrates também é belo. Juntos eles formam uma Paideia, um encontro entre o mestre e seu discípulo pela via do Eros, do erotismo.

O corpo para os gregos deve ser moldado nas academias. A feiura do corpo é ojerizada. Os deficientes físicos são jogados ao mar, descreditados e esquecidos. O corpo grego quando não é visto nas formas da simetria e da beleza deve ser um corpo escatológico.

Talvez Sade, o divino Marquês, tenha observado essa escatologia como ferramenta ao seu discurso através do corpo erotológico ou o corpo para o mal[8].

O feio, o risível, o sodomita, a prostituta, o proxeneta, os medonhos eram a expressão de um desejo que beirava à lascívia. Na Filosofia na Alcova[9] as fezes, a gonorreia, o esperma pútrido, o matricídio, os pênis avantajados e brutais formam a antessala do enredo desse romance e de outros escritos sadianos.

Sodomizar a mãe e depois matá-la, costurar uma vagina e colocar dentro dela uma ratazana faminta para comer as vísceras da mulher eram as assertivas do desejo do divino Marques. O desejo era ação, uma ação que saia da irrupção Iluminista. As luzes traziam à tona todos os desejos, sem a escuridão do teocentrismo medieval. Desta sorte, tudo que se podia fazer com o corpo era possível. Mesmo que houvessem penalidades cíveis às sexualidades consideradas desviantes.

Michel Foucault[10] lembra-nos sempre de uma vigilância do corpo. Esse corpo docilizado e vigiado pela sociedade vitoriana oitocentista, mas as setecentistas e seiscentistas também. O corpo-gay, o corpo-mulher, o corpo-infantil, o corpo-dismórfico, o corpo-judaico e o corpo-alienado eram passíveis de estudos nosológicos e etiológicos. O corpo era “descreditado” para se “creditado” pelo controle - filho dileto do biopoder.

A escola e sua via máxima do establishment da educação, também é um corpo habitado por outros corpos. A escola é asilar para Foucault, e que desempenha funções indispensáveis para se adestrar o selvagem e ordená-lo. Os sujeitos da educação possuem corpos de desejo. Esses corpos também são sociais. São corpos que desejam conhecer, transmitir conhecimentos, que estão inscritos na esfera de uma ação educativa: ensinar e aprender.

Esquece-se que dentro de uma escola há diversos sujeitos demarcados em desejos. Os alunos que se agrupam em tribos. Os professores com suas teorias e práxis pedagógicas. Ou seja, o corpo também é ação, também é heterotipia. O grupo dos nerds, outro dos tatuados, outro dos roqueiros, dos religiosos, outros dos clubbers etc. Tudo isso é um corpo, mas que se encontra facetado em múltiplos corpos. O corpo-escola encontra-se minado e povoado por corpos-alunos, corpos-professores, corpos-diretores, corpos-auxiliares, corpos-múltiplos.

Toda uma teoria que se valha de ser pedagógica também é um corpus teóricos. Piaget, Wallon, Vygotsky, Paulo Freire, Pestalozzi, dentre outros, foram teóricos da educação ou pensaram a educação em formas particulares. Eles criaram perspectivas teóricas para se pensar, por exemplo, o ensino-aprendizagem, ou a psicogenética infantil. Eles descreveram os sentidos da educação guiados por uma ordenação teórica que para Freud poderia ser uma experiência de sublimação[11]. A concepção de que há um corpus teóricos nesses autores que pensam a Educação, já se inscreve em dois movimentos, a saber, o discurso sobre algo, e o processo em que este algo fora executado.

discurso sobre algo é sobre a criação de categorias educativas com a finalidade de se estabelecer uma lógica e coerência sobre um determinado discurso. A zona de desenvolvimento proximal de Vygotsky é um desses discursos; a educação bancária de Freire é outro, e todos formam um corpo, que mesmo sendo teórico é um corpo.

O processo em que este algo fora executado é forçosamente a relação do mundo intrapsíquico com o interpsíquico desses pesquisadores. O mundo endógeno é formado por leis constituídas a partir de uma vivência interna, onde o corpo é esquadrilhado pelo seio materno, mas logo se torna independente deste. Com o exógeno e as relações dos sujeitos com esta exterioridade formou-se um processo secundário, seguido da castração, em que fez o sujeito ser e existir como sujeito com finalidade a produzir obras (literatura), ideias e teorias.

Quando comentamos sobre isto, queremos efetivamente dizer que a construção de um arcabouço teórico na educação passa invariavelmente por estas posições, O discurso sobre algo e o processo em que este algo fora executado.

A esfera do discurso se apresenta. E é para a psicanálise que o discurso torna-nos sujeitos de desejo, já o somos constitucionalmente, mas pensados e articulados com a linguagem, isto sim se efetiva a formar/gerir/conceber sujeitos desejantes. O empreendimento desse desejo é a falta, o gérmen da falta forma os sujeitos desejantes mais uma vez.

Podemos aventar de que sendo portadores de um buraco existencial/faltoso/desejante temos uma iminência de criarmos, de sairmos de uma postura hierática para uma postura humana através do corpo que anima e nos dá a possiblidade de ora desconhecê-lo, ora reconhecê-lo através do discurso, que é peremptoriamente fundador da subjetividade. 


Referências
DELEUZE, G; GUATTARI, F. O Anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia. Portugal: Editora Assírio & Alvin, 1972.
FADIMAN, J; FRAGER, R. Personalidade e crescimento pessoal. 5 ed. Porto Alegre: Editora Artmed, 2004.
FOUCAULT, M. A história da sexualidade 1. A vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 2014. 
FREUD, S. A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. Sobre o Narcisismo: uma introdução. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HEIDEGGER, M. Que é isto - a filosofia? Tradução Emílio Stein. São Paulo: Duas Cidades, 1991
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005
PEIXOTO, F. Sade: Vida e obra. Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1979.
PLATÃO. O Banquete. Tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1991.
SADE, M. A filosofia na alcova. São Paulo: Iluminuras, 2000.




[1] FREUD, S. A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
[2] HEIDEGGER, M. Que é isto - a filosofia? Tradução Emílio Stein. São Paulo: Duas Cidades, 1991.
[3] FREUD, S. Sobre o Narcisismo: uma introdução. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
[4] Apud FADIMAN, J; FRAGER, R. Personalidade e crescimento pessoal. 5 ed. Porto Alegre: Editora Artmed, 2004.
[5] LACAN, J. O Seminário, livro 10: A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005.
[6] DELEUZE, G; GUATTARI, F. O Anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia. Portugal: Editora Assírio & Alvin, 1972.
[7] PLATÃO. O Banquete.Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1991.
[8] PEIXOTO, F. Sade: Vida e obra. Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1979.
[9] SADE, M. A filosofia na alcova. São Paulo: Iluminuras, 2000.
[10] FOUCAULT, M. A história da sexualidade 1. A vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
[11] Sublimação no sentido de um mecanismo de defesa secundário que transformam os desejos sexuais em algo socialmente aceito.

*As ideias e informações publicadas neste artigo são de total responsabilidade do seu autor.  

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