Autor: Yvisson
Gomes dos Santos
Contato: yvissongomes@hotmail.com.
RESUMO: a presente carta de Freud destinada a
seu amigo Fließ é considerada uma escritura capital do pai da psicanálise em
relacionar os sintomas neuróticos com as crendices populares na busca de se
compreender as relações do sinto(mal) com a cultura do sujeito moderno. Vale
salientar que a tradução da presente Carta de Freud foi-me possível devido as
aulas de Alemão Instrumental I e II que cursei no curso de filosofia da UFAL,
tendo como professora destas duas disciplinas eletivas Irene Maria Dietschi
(FALE/UFAL).
PALAVRAS-CHAVE: Carta, Freud, Cultura.
Para
Freud não era interessante e nem adequado limitar o estudo das histerias ou de
outras neuroses pelo viés organicista. A ideia do vienense foi de despertar em
seu leitor as relações do mito, da literatura, do folclore, da sociologia, da filosofia,
dentre outros, com as investigações psicanalíticas que pudessem apresentar-se,
nem que sejam metaforicamente, com o sintoma.
Os
sintomas neurótico, psicótico e perverso tinham caminhos distintos na
constituição do sujeito. Ser neurótico era aceitar a barreia da castração, já
ao psicótico seria a forclusão e ao perverso, burlar, ludibriar e denegar a
metáfora paterna. Esses vieses distintos devem ser considerados na arquitetura
freudiana como elementos axiais ao que se convencionou chamar de epistemologia
psicanalítica.
Os
primeiros escritos de Freud foram organizados principalmente, aqui no Brasil, pela
Editora Imago. Optamos por traduzir Briefe
an Wilhelm Fließ diretamente do alemão para nossa língua vernácula. Além da
tradução da Imago (português), temos da Amorrortu Editores (espanhol). Boas traduções,
mas que, ao nosso entender, necessita-se de uma maior ênfase à simplicidade e,
ao mesmo tempo, à cumplicidade de Freud com seu discípulo e amigo testamentada
em escritura. Advertimos que não há pretensões outras nesse empreendimento, mas
apenas a necessidade de um novo olhar sobre o referido documento.
Considera-se
que toda tradução implica um comprometimento do tradutor, ora ele pode fazer-se
traidor do texto, ora ele pode dar uma leitura hermenêutica através sua
formação cultural e estilística. Essa última opção me dispus a fazer.
Escolhemos,
na presente tradução, pelo estilo informal do texto de Freud (já que se tratava
de uma carta ao seu amigo pessoal) pelos meus vieses estilísticos.
Sabemos
que a palavra estilo do latim stilum
que pode se desdobrar metonimicamente na palavra estilete; e é nesse sentido
que o estilo corta, perfura, risca certo tecido de palavras e discursos que
perfazem uma colcha de retalhos linguísticos (o estilo é de Freud, e tentamos a
contento fazer permanecer e aclarar o estilo do pai da psicanálise).
É
de nota que o presente texto de Freud algumas vezes se apresenta em forma de
rabiscos, seguido por reticências, mas que forma um apanhado das inquietações
de Freud à época oitocentista. Preferimos deixar a carta tal como ela se
apresentava, a saber, de uma forma coloquial e sem figuras de linguagens
inapropriadas, ou seja, um escrito que saboreia o estilo freudiano de escrever
em suas incursões sobre os sintomas e patologias inerentes ao século XIX
(aprioristicamente).
TRADUÇÃO DO ALEMÃO
A Carta [...][1]
[...] A ideia de trazer as bruxas na história
ganha vida. E por outra parte a considero bem sucedida. Os detalhes começam a
se proliferarem. O “voar” está esclarecido, a vassoura sobre a qual elas
cavalgam é provavelmente o grande Senhor Pênis. Nos encontros das reuniões
secretas, com dança e divertimentos, pode-se observar isto todos os dias nas
ruas onde crianças brincam. Certo dia li que o ouro que o diabo oferta as suas
vítimas geralmente se transformam em fezes; num certo dia, o Senhor E, me disse
de maneira repentina sobre os delírios de dinheiro de sua [antiga] babá (e por
um desvio Cagliostro-orifício-merda) que o dinheiro de Louise era sempre fezes.
Destarte, nas histórias de bruxas o dinheiro volta a transforma-se na
substância na qual ele foi gerado. Ah, se soubesse porque o esperma do diabo
sempre é qualificado como “frio” nas confissões das bruxas! Encomendei o Martelo das Feiticeiras (Malleus maleficarum), e agora que dei o
último curso sobre as paralisias das crianças, estudá-lo-ei com afinco. A
história do diabo, o léxico popular dos palavreados de insultos nas canções
infantis sobre o malfazejo, tudo isto tem me interessado em particular. Você
poderia me indicar sem esforço, através de sua admirável memória, alguma boa
bibliografia sobre o referido assunto? Sobre as danças e as confissões das
bruxas, recordo-lhe sobre as epidemias das danças das feiticeiras na Idade Média.
A Louise do Senhor E. era uma dessas bruxas que dançavam, e ele costumeiramente
se recorda dela quando assiste a um balé, seguindo-lhe de angústia ao ver uma
peça de teatro.
O
voar, o flutuar, correspondem aos expedientes acrobáticos nos ataques
histéricos dos meninos etc.
Se
me permite uma opinião: nas perversões, cujo negativo é a histeria, podemos
pensar que houve em certo momento uma relação de um culto sexual que
possivelmente se tornou religião no oriente semítico (Moloch, Astarte). [...]
As
ações perversas são, além disso, sempre as mesmas, e providas de sentido e
construídas segundo algum paradigma que será preciso apreender.
Desta
feita, imagino uma religião do diabo, na antiguidade primordial, cujos ritos se
estenderam em segredo, e assim eu concebo severo tratamento dos juízes às
bruxas. E as investigações se proliferam.
Outro
tópico da corrente principal que defendo deriva-se da seguinte consideração:
existe uma classe de pessoas que nos dias atuais narram histórias análogas de
bruxas, também os pacientes contam tais histórias, mas não encontram respaldo nos
outros que não creem nas mesmas, mas, mesmo assim, a crença sobre tal tema
permanece inabalável. Me refiro, como você deve ter imaginado, ao paranoico, que
em suas queixas delirantes relacionam comida com merda, e dizem que foram maltratados
a noite de maneira desprezível e sexual, no qual tudo isto faz parte de seu
conteúdo mnemônico, etc. Você sabe que tenho distinguido o delírio de
recordação do delírio de interpretação. Este último está vinculado ao recurso
impreciso em relação aos criminosos, que por sinal estão abrigados pela defesa.
Ainda
um detalhe: na histeria, tem-se o pai com uma elevada demanda de amor pelos
seus filhos, ocorrendo, algumas vezes de forma contrária, um sentimento de humilhação
perante o amado (pai), ocasionado uma impotência por não poder se casar devido
a um ideal insatisfeito. Explico: a grandiosidade do pai inclina-se de forma
condescendente a criança, algumas vezes retraindo-a. Compare esta combinação:
paranoia, delírios de grandeza e a dúvida fantasiosa com relação se a criança é
verdadeiramente filha de seu pai. É o reverso da medalha.
Tudo
isto, ainda assim, torna-se incerto a sustentar tal conjectura, ou seja, que a
escolha da neurose estaria condicionada pelo seu tempo de origem (gênese), mas
ao invés disso parece ter se fixado na primeira infância. Mas essa definição é
sempre oscilante entre o momento do nascimento e o tempo da repressão (sendo este
último, o meu preferencial).
***
Considerações Finais
A escritura freudiana nesta carta estava em gérmen. Não à toa que ela faz parte também dos escritos pré-psicanalíticos do autor.
O
que versa a Carta é a relação que
Freud inquire sobre o imaginário popular das bruxas e dos neuróticos. As
danças, a vassoura onde as feiticeiras voavam, os sortilégios e divertimentos
têm, segundo o psicanalista, relação com as brincadeiras infantis. Os elementos
físicos que as bruxas ofereciam aos incautos, como o ouro, poderiam ser ligados
metonimicamente as fezes, e assim por diante. Freud nesta Carta demonstra o
interesse sobre o estudo das feiticeiras, e pede a seu discípulo e amigo material
bibliográfico para estudar mais detalhadamente tal assunto.
É
de nota que tal Carta parte de uma inquietação de Freud sobre este universo
folclórico nascido do medievo, e que nos dá pistas, mesmo que neófitas, de que
os sintomas neuróticos e paranoicos têm correspondentes com a imago paterna.
Essa
Carta, em síntese, deve ser vista
como uma das tentativas de Freud para se fazer entender o que viria a ser
futuramente a repressão ligada com as fixações pré-genitais no desenvolvimento
psicossexual do sujeito: parte essencial da construção sinto[mal] do neurótico.
Sobre o autor: É psicólogo (CRP15/1795) e licenciado em filosofia pela UFAL. Especialista em Linguística pela UNICID/AAL. Atualmente é mestrando em Educação pela UFAL.
Referência
FREUD, S. Briefe an
Wilhelm Fließ. 1887-1904. Hg. Von J.M. Masson. Frankfurt am Main:
Fischer, 1986.
[1] FREUD, S. Briefe an Wilhelm Fließ. 1887-1904. Hg.
Von J.M. Masson. Frankfurt am Main: Fischer, 1986. S. 194-195.
*As ideias e informações contidas neste artigo são de total responsabilidade do seu autor.
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